sábado, 14 de novembro de 2009

Ibitutinga

José Antônio de Ávila Sacramento [1]
Para Oyama Ramalho e para o “Pingo” (menos conhecido por Willer Benedito de Souza).

A Estação Ferroviária de Ibitutinga foi inaugurada em 20 de janeiro de 1887. Em língua indígena o nome dela significa “nuvem branca”. O chamado “Trem do Sertão” por ali passava rumo a Aureliano Mourão, onde havia uma bifurcação, com uma linha chegando a Lavras (a partir de 1888) e a principal seguindo para o norte, atingindo Barra do Paraopeba (a partir de 1894). O tráfego ferroviário cessou em junho de 1983. Em 1984 o trecho ficou sem os trilhos. A Estação foi fechada e o prédio atualmente está servindo de moradia...

A estaçãozinha de “Nuvem Branca” fica bem ao lado da Ponte de Santa Rita do Rio Abaixo, sobre o Rio das Mortes, ficando “de um lado São João del-Rei, a cidade, aonde se ia resolver problemas, fazer compras na farmácia, passar uma escritura, ouvir um conselho do Seu João Ramalho ou aviar uma receita no Seu Banho [2].  Ia-se de roupa limpa, de cabelo penteado, de terninho de brim, de vestidinho de festa, na jardineira do Vadinho, no caminhão do Vicente Mendes ou no trem de ferro da Oeste de Minas.”. Atravessando o rio, “do outro lado era Santa Rita do Rio Abaixo — que cismaram rebatizá-la de Ritápolis — aonde ninguém ia, somente voltavam os que tinham ido, maravilhados com barulho citadino, com a imponência do barroco, com as tabuletas coloridas e com o sortimento das abastadas casas comerciais. E para ir e vir existia uma ponte de pau, que sabe Deus quando e como foi construída. Depois, aproveitaram seus pilares de pedra e fizeram uma outra de cimento armado".


Aspecto atual da Estação de Ibitutinga (foto do autor - 28.09.2009) 

Eu não sei bem da verdade, mas desconfio muito que o ex-prefeito Higino Zacarias de Souza batizou a nova ponte de “cimento armado” com o nome de “Ponte de Santa Rita do Rio Abaixo” por causa de uma memorável carta a ele dirigida no dia 21 de junho do ano de 2000”. A mensagem foi redigida pelo prof. Oyama de Alencar Ramalho e trazia em seu bojo fortes argumentações históricas e razões sentimentais em favor da dita denominação. Foi da epístola de Ramalho que este escriba subtraiu estas formidáveis linhas.

Oyama de Alencar Ramalho, no livro “Cassiterita” [3] (167 páginas, 1996), descreveu muito bem “Nuvem Branca”: “era uma pequena estação ferroviária, quase em cima do km 117 da linha tronco: Sítio-Barra do Paraopeba. Seu estilo arquitetônico seguia o padrão das demais construções da Rede Mineira de Viação, a antiga Oeste de Minas; pé direito de mais de cinco metros, paredes dobradas, telhado de duas águas, sendo que, na parte da frente, uma sustentação de mãos francesas permitia que o beiral se prolongasse, cobrindo toda a plataforma. O madeirame, todo ele, de pinho-de-riga. Bem no centro, a agência com bilheteria e portinhola com cancela; no seu interior, a mesa do telégrafo, o marcador e o escaninho de bilhetes, o cofre de segredo, um tamborete, duas cadeiras e um armário grande, abarrotado de formulários e de material de escrita. Na parede um relógio de pêndulo com algarismos romanos e um emblema de madeira e metal amarelo com encaixe para três bandeirinhas de filele [4] – verde, vermelha e branca. À meia altura de uma das paredes, havia uma janelinha, que servia de comunicação com a moradia do agente. A casa situava-se do lado do nascente do sol e prolongava-se com o jardim, onde o manacá roxo nunca faltava e o antúrio. Do lado do poente, o armazém, com pesadas portas de correr. No fundo, o quintal, com bica de água corrente, canalizada no bambu gigante, derivada do rego que vinha das terras da fazenda Nossa Senhora das Mercês para tocar dois moinhos de fubá; o poço de guardar peixe e um solitário pé de limão galego. No limite do terreno, um arrimo de pedras, endurecido pela erva cidreira e algumas piteiras, sustentava o barranco, sobre o qual se erguia uma antiga e imponente árvore de óleo-bálsamo, cuja copa sombreava parte do galinheiro. Exceto as pedras do alicerce, que se prolongavam como passeio em frente da porta da cozinha, o restante era chão batido e limpo, varrido com vassoura de alecrim.”.

Na mesma obra, Oyama relembra o trem de passageiros e carga “que passava cinco vezes por semana” e que quando estava “descendo para o sertão, chegava às 8,57 e seguia viagem às 9,03. Na volta, chegava às 16,16 e saía às 16,22 horas. Duas vezes por semana, transformava-se em expresso, chegava às 4,37, na ida; e às 21,21 horas na volta, parando somente um minuto na estação”.

A movimentação em Ibitutinga, ou melhor, “a vida social de Nuvem Branca girava em torno do trem de passageiros”. Assim, ainda segundo Oyama, “não se sabe de onde apareciam, mas sempre havia passageiros para embarcar; se homem, estaria de botina-de-goma, calças de brim rancatoco e paletó cáqui; se mulher, não lhe faltam o vestidinho de chita, o batom, delineando um coraçãozinho no lábio superior e os sapatos escambeteados  [5] de meio salto. As malas, se houvesse, eram sempre as de papelão grosso, encapadas de pano listrado”. “O negócio do Seu Nogueira fervilhava de matutos, bebendo pinga, fernete ou traçado com o acompanhamento de pele de porco torrada, chouriço, doce de batata-roxa, pé-de-moleque e rapadura.No cantinho do balcão, sempre havia tempo para uma queda-de-braço, uma partida de bisca ou de truco, e embalados pelo álcool, todos contavam suas pobres vantagens...”. Mas, “quando o trem apontava na curva, a plataforma tornava-se pequena para tanta gente, andando pra lá e pra cá. Os moços desfilavam defronte dos carros de passageiros à procura de um olhar ou de um sorriso e quando os encontravam, encabulavam-se.”. Era só o trem chegar na estação que o Zé Assumpção “embarcava as mercadorias” e “desembarcava as cargas do trem para o armazém”. Embora assorbebado de trabalho, o tal do Zé Assumpção “era o que menos tempo tinha para conversar, mas era o que mais sabia das notícias”, e, para fazer todo o seu trabalho tinha apenas “exatos seis minutos.”. Depois deste exíguo tempo, “o agente batia o sino, autorizando a partida, o chefe do trem apitava e a máquina, uma Baldwin sonolenta, de Philadelphia [6],  resfolegava seus vapores como se estivesse fazendo um esforço descomunal para arrastar os pesados vagões que se equilibravam na bitolinha de 76 cm.”.  

Tarcísio José de Souza, na página 131 do seu livro “Certa Ocasião...”, narra que numa “madrugada sombria e chuvosa de abril, postado no bico da plataforma, guarda-chuva pendurado no bolso traseiro da calça e a capa de chuva sobre os ombros, Zé Augusto, guarda-chaves da estação de Ibitutinga, interroga apressadamente sua filha, Maria Ismênia, que se aproximava trazendo as malas do correio: Onde cê vai, Maria?”. E ela responde: “Vou entregar o correio!”. “Entregar o correio aonde, Maria”, retrucou Zé Augusto. Entregar o Correio no trem, pai!”, respondeu Maria. “Que trem? Acabou o trem, acabou Ibitutinga, acabou tudo...!!!”, lamuriou o guarda-chaves. A razão do queixume foi que despencara do céu vasto aguaceiro, um “dilúvio” que inundou aquelas paragens, parecendo a Zé Augusto que tudo que ali existia estaria irremediavelmente perdido. É, mas não foi daquela vez que Ibitutinga se acabou; a Estação e o trem resistiram bravamente. A verdadeira hecatombe preconizada pelo guarda-chaves abateu-se sobre o local a partir de 1983.

Confesso aos meus leitores que pouco sabia como ainda pouco sei sobre as coisas de Ibitutinga. Passei por lá de trem, em viagem agradavelmente sacolejada, apenas uma solitária vez, no iniciozinho dos anos 1980. Foram paradas rápidas na estação, na ida e na volta. Lembro-me apenas que na volta entraram alguns pescadores, munidos de seus caniços e exibindo alguns dourados, rumo a São João del-Rei.

Em compensação, por inúmeras vezes (sem ter os olhos voltados para as particularidades do local, confesso!) passei de ida e volta pela ponte velha e, mais recentemente também sobre ponte nova, indo para a cidade de Santa Rita ou para mais abaixo dela. Nada mais.

Nada mais? Sim, nada mais até o dia 28 de setembro de 2009, quando um amigo que ficava septuagenário, estando em companhia de outro quase que octogenário, resolveu fazer a gentileza de convidar-me para um passeio memorial lá pelas bandas de Ibitutinga. Fomos de carro, pelo asfalto. Já no local, ouvindo a conversa deles, que têm mestrado e doutorado em assuntos ibitutinguenses, pude perceber a riqueza dos casos e causos envolvendo as personagens que habitaram aquelas imediações, episódios acontecidos nas fazendas e nas margens daquele rio, envolvendo fatos da memória ferroviária daquele local. Depois de algum tempo aproveitando a boa sombra de um bambual onde a prosa correu livre sobre o colchão de folhas e sob a trilha sonora de um sabiá, passamos pela decadente estaçãozinha; depois, alcançamos uma espécie de vilarinho ferroviário (as “Turmas”, moradia do pessoal da manutenção da linha) cujo vestígio ainda existe um pouco mais adiante e que ainda preserva uma graciosa construção com paredes em pedras aparentes, a “casa do trole”.


Debaixo da agradável sombra, nas barrancas do Rio das Mortes, em Ibitutinga, sobre o fofo colchão de folhas do bambuzal e sob a afinada trilha sonora de um sabiá, correu livre, leve e solta a boa prosa entre Oyama e o “Pingo”... (Foto do autor, em 28.09.2009) 

De lá voltamos para São João del-Rei, desta feita pela estrada de terra, margeando o lado esquerdo do rio. Procurando a “cachoeira do 12” [7], de repente chegamos à Fazenda do Pombal; coincidentemente, uma composição ferroviária moderna, com mais de uma centena de vagões carregados de minério, cruzava aquele grande viaduto que fica na frente da entrada para o local onde o Tiradentes nasceu [8]; ela me apresentou tão altiva que achei que lá do alto estivesse a debochar do leito moribundo e pelado da antiga EFOM, onde estávamos.

Como se eu ainda não soubesse que a nossa região guarda muitos tesouros, fiquei embasbacado pelo fato de cada vez mais poder confirmar como são ricos de Histórias e estórias os nossos sub-burgos, incluindo aí o sítio de “Nuvem Branca”! Naquele momento, não pude deixar de lembrar de uma frase cujo direito autoral é bastante disputado: “Quer ser universal, fale do seu quintal” [9]. Esta citação é a que guia da maioria dos meus escritos e guiou-me também para fazer este breve relato da visita a Ibitutinga!

Agora, depois de conhecer um pouco do local e da sua história, estou com uma forte queda pela região de “Nuvem Branca”. Procuro resposta para esta repentina paixonite que é ambígua, reconheço, posto que já esteja comprometido com a região do arraial bandeirante e migueliano da “boca do mato”.

A resposta para esta indagação deve estar contida numa frase da já mencionada carta que o Oyama escreveu para o ex-prefeito de “Santa Rita do Rio Abaixo”: “sem o passado trivial na memória destruiremos nossos mitos, destruiremos nossa mineiridade e não conseguiremos enxergar com exatidão o porvir. Seremos presas fáceis da velocidade dos tempos modernos e globalizados que nos têm levado para os rumos incertos do imediatismo". 

Fontes de consulta:
      RAMALHO, Oyama de Alencar. Cassiterita. São João del-Rei: Edit. do autor. 1996. 167p.
      SOUZA, Tarcísio José de. Certa Ocasião... São João del-Rei: FUNREI, 2000. 133p.: ilustrações de Fábio Márcio e Sônia Maria.


Notas

[1]  Ex-presidente do IHG de São João del-Rei. Este artigo foi publicado originalmente, em versão reduzida, no JORNAL DE MINAS (Edição 108, Ano IX, de 06 a 12/11/2009,p.2), editado e distribuído em São João del-Rei pelo sócio efetivo deste IHG, Dr. Neudon Bosco Barbosa.
  

[2] Uma referência ao ilustre farmacêutico Sebastião Alves do Banho, que manteve em S. João del-Rei, durante muitos anos, a Farmácia Banho.
  

[3] Cassiterita é um mineral (óxido de estanho, SnO2), além de ser também o título de um interessante livro da lavra de Oyama de Alencar Ramalho. As regiões de Santa Rita do Rio Abaixo, Ibitutinga e adjacências foram grandes locais de extração do mineral, atraindo, por causa disso, técnicos, forasteiros e aventureiros de várias partes do país e até mesmo do exterior.  Conversando com Oyama e com o “Pingo”, que bem conheceram a “febre” do minério por aquelas bandas, ouvi deles que possivelmente, à época, aquela região pudesse ser considerada, sem exageros, segundo dissera o geólogo Feres Dekechi, como “a maior produtora mundial de cassiterita”.
  

[4] Filele é “tipo de tecido leve de lã com que se fabricam bandeiras, bandeirolas, galhardetes etc.”.
  

[5] Segundo a linguagem popular, pronunciava-se iscambetiádus.
  

[6] As locomotivas norte-americanas Baldwin Locomotive Works, produzidas na Filadélfia, dominaram, à sua época, o mercado ferroviário mundial.
 

[7] Ao falar em “Cachoeira do 12”, relembro o caso do “Moleque 12”, relatado por Tarcísio José de Souza no seu livro “Certa Ocasião...”, páginas 90-93: um sujeito muito estranho comprou passagem com destino a Lavras-MG, em Ibitutinga; Zé Theodoro, depois de alertado pelo guarda que desconfiara dos modos do passageiro, telegrafou para S. João del-Rei, de onde saíram quatro agentes da polícia e deram voz de prisão ao suspeito. Tratava-se do “Moleque  12, um fora da lei, preso na cadeia de São João, por vários assaltos, latrocínio e outros crimes” e que “havia escapado, às 18 horas, durante um descuido do carcereiro”.  No momento em que foi preso, um policial disse para ele: “Aí, ‘Moleque 12’, agora tu morre na cadeia!”. E ele respondeu: “Morro nada. Tenho contas a acertar com o agente de Ibitutinga”. Dizem que Zé Theodoro, temeroso do cumprimento daquele juramento, passou até a andar armado e só tranqüilizou-se após saber da morte do meliante.
 

[8]  Trata-se de um dos muitos viadutos da chamada “Ferrovia do Aço”, cujas obras foram concebidas a época do "Milagre Econômico", durante o regime militar, com sua construção anunciada pelo governo em 1973. O traçado da ferrovia necessitou de grandes e difíceis obras de engenharia, principalmente túneis e pontes, por causa do relevo acidentado destas nossas muitas Minas. Privatizada em 1997, atualmente a ferrovia é explorada pela MRS Logística.
 

[9]  A citação é atribuída ao russo Liev Nikoláievich Tolstói. Tolstói foi um dos grandes da literatura russa no século XIX. Segundo Carla Tichetti dal Pacci e Silva (historiadora e licenciada em letras modernas), Tolstói citava a frase freqüentemente, mas o autor dela teria sido o poeta, prosador e dramaturgo russo Aleksander Púchkin. Dizem que um jovem escritor russo procurara Púchkin, de quem se tornara amigo, com a seguinte indagação: como fazer para que o seu romance se tornasse universal? Púchkin respondeu-lhe: “Queres ser universal? Fale sobre a sua aldeia, ou sobre o seu quintal” (em russo: “Rotish Ziemliatiski? Skajish tibiê Dirievie!”).  Aí o escritor foi para casa e escreveu o romance. O nome dele era Nikolai Gogol; o título do romance que ele escreveu: Almas Mortas, obra-prima da literatura universal. Adélia Prado também já citou a frase em uma entrevista, mas não fez comentários sobre a autoria dela...

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