Publicado originalmente no blog GaxetaLeaks/Trilhos do Oeste com o título "Ando meio bitolado"
Por Welber Santos
Historiador NEOM-ABPF
Por Welber Santos
Historiador NEOM-ABPF
Não, não é um trocadilho com aquela música dos Mutantes. É apenas a tentativa de explicar para alguns amigos mais bitoladinhos o que quer dizer bitola no vocabulário ferroviário.
Em minha formação acadêmica em História, me deparei com alguns professores, pesquisadores, completamente ignorantes sobre o termo. Não é para menos, a formação do pesquisador exige um grau de “bitolação” temática bastante que torna o sujeito um tanto monográfico. Claro que isso é também uma auto-crítica, me especializei na pesquisa sobre as estradas de ferro e na sociedade e economia oitocentistas.
No processo de formação da economia contemporânea no mundo, e, consequentemente, no Brasil, as ferrovias receberam papel de grande relevância por se tratar do meio de transporte mais adequado para vencer as distâncias continentais, seja para ligar as áreas de plantation de café e cana-de-açucar aos portos, ou mesmo no reforço do mercado interno e da "modernização" viária de maneira geral.
Ligado aos temas economia e capital social, a bitola adotada pelas ferrovias é um tema bastante interessante de se discutir. Tanto é que, na diretoria da E. F. Dom Pedro II/Central do Brasil, houve acalorado debate sobre a questão da bitola a se adotar para as linhas em construção. Surgiu a guerra entre os larguistas e os estreitistas.
Os visitantes do humilde blog, não familiarizados com o mundo dos trilhos, a todo tempo deparam-se com o termo bitola ou "bitolinha". Como o blog é direcionado ao universo da Estrada de Ferro Oeste de Minas, em especial, e até agora quase exclusivamente, o da malha em bitola de 0,76m, fiquei devendo um post sobre este pequeno e essencial detalhe.
No gráfico temos a bitola padrão brasileira (1,60m), a mais utilizada (1,00m) e a que destoa da pratica até então (0,76m).
Para começar a falar sobre o assunto temos um problema de ordem semântica. O termo "ferro" só aparece no referente às estradas sobre trilhos na adaptação de railway ou railroad para as línguas românicas. Em francês chemin de fer, em espanhol ferrocarriles, em italiano ferrovia e em português estrada de ferro/ferrovia. Railway se refere a estradas sobre trilhos, e trilhos em si não são necessariamente de ferro ou aço, o que possibilita se falar da origem das estradas por trilhos (railways) ainda na Antiguidade.
O ferro só começou a ser utilizado para os trilhos nas pequenas ferrovias de minas de carvão, ainda com tração animal, e daí que varia os termos nas línguas supracitadas que possuem o ferro como radical na morfologia das palavras.
A bitola padrão no mundo (standard gauge) equivale mais ou menos à largura das estradas romanas, que, por sua vez, equivaliam à largura de duas ancas de cavalo. Ou seja, até hoje, os milhares de cavalo-vapor (HP-horse power) das locomotivas de todo tipo andam sobre trilhos que se separam pela distância de duas bundas equinas.
A questão é que, devido à morfologia das primeiras locomotivas a vapor na primeira metade do século XIX, as primeiras ferrovias foram construídas com distância entre os trilhos de maior vulto. A bitola larga é de utilização mais antiga do que a estreita. O desenvolvimento das máquinas, com a reestruturação do mecanismo de sustentação e tração das locomotivas, pode-se aproximar os trilhos tornando a via mais estreita.
Encontrei esta foto num cd, há alguns anos, não sei onde fica e nem quem fotografou. Mas sei que ilustra bem a diferença da capacidade da via férrea de acordo com a bitola da via. Duas ferrovias paralelas em bitolas distintas. A da esquerda em bitola provavelmente de 2 pés (0,60m) e a da direita em bitola standard (4 pés e 8 e 1/2 polegadas ou 1,43m).
A escolha da bitola a ser adotada pelas ferrovias variavam por alguns critérios, entre eles podemos destacar: a economia da construção; o volume de passageiros e cargas a serem transportados; a distância a ser vencida pela estrada; o relevo a ser percorrido de acordo com o raio mínimo das curvas, a velocidade máxima possibilitada, etc.
Costumava-se preferir as bitolas mais estreitas para ferrovias de pequeno porte e tráfego mais tímido. Pessoalmente, achei de grande acerto a opção tomada pelo engenheiro Joaquim Lisboa quando da construção do trecho entre Sítio e São João del-Rei, da Oeste.
O contrato com o governo provincial previa a construção da ferrovia em bitola estreita, não especificando exatamente qual seria a medida. A escolha da bitola de 0,76m (2’6”) deu margem a protesto do governo em Ouro Preto. Como naquela época já era comum a bitola estreita adotada ser a de 1,00m, a presidência da província argumentava que devia repassar apenas o valor equivalente a 76% dos 9:000$000 (nove contos de réis) por quilômetro construído.[1]
Por padrão, já desde a incorporação da E. F. Dom Pedro II ficou estabelecida a bitola de 1,60m como a preferida para a bitola larga e 1,00m para a estreita, o que não impediu uma variação maior nas medidas.
Lista das ferrovias do Brasil e a bitola de cada uma (1854-1884)
Estradas de Ferro | Ano | Bitola (em metros) |
E. F. Mauá | 1854 | 1,67 |
E. F. Dom Pedro II (E. F. Central do Brasil) | 1855 | 1,60 |
E. F. Recife ao São Francisco | 1858 | 1,60 |
E. F. da Baía ao São Francisco | 1860 | 1,60 |
E. F. Recife a Caxangá | 1867 | 1,20 |
E. F. Santos a Jundiaí | 1868 | 1,60 |
E. F. Recife a Olinda | 1870 | 1,40 |
E. F. União Valenciana | 1871 | 1,10 |
Companhia Paulista de E. F. | 1872 | 1,60 |
E. F. Paraná | 1872 | 1,00 |
E. F. Ituana | 1873 | 0,92 |
E. F. Campos a São Sebastião | 1873 | 0,95 |
E. F. Leopoldina | 1873 | 1,00 |
E. F. Macaé a Campos | 1875 | 0,95 |
E. F. Niterói a Macaé | 1874 | 1,10 |
Companhia Mogiana de E. F. | 1875 | 1,00 |
E. F. Sorocabana | 1875 | 1,00 |
E. F. Central da Bahia | 1875 | 1,06 |
E. F. Nazaré | 1875 | 1,00 |
E. F. São Paulo Rio | 1875 | 1,00 |
E. F. Oeste de Minas | 1881 | 0,76 |
E. F. Santa Isabel do Rio Preto | 1881 | 1,00 |
E. F. Santana | 1883 | 1,00 |
E. F. Dona Teresa Cristina | 1883 | 1,00 |
E. F. Vassourense | 1884 | 0,60 |
E. F. Minas e Rio | 1884 | 1,00 |
Ver: SANTOS, Welber. A Estrada de Ferro Oeste de Minas: São João del-Rei (1877-1898). Dissertação de Mestrado. Mariana, MG: ICHS/UFOP, 2009, p.105.
A maioria das linhas das companhias da lista acima teve a bitola alterada para 1,00m e no final das contas o resultado foi a malha dividida em quatro bitolas distintas: 0,60m; 0,76m, 1,00m e 1,60m.
As estradas de ferro em bitola abaixo de 1,00 foram praticamente extintas, sendo a malha atual do Brasil dividida entre a bitola métrica e a larga (1,60m). A quebra de bitola é um fator que cria sérias dificuldades de integração entre várias regiões, exigindo a baldeação de mercadorias em vários pontos, o que encarece bastante a utilização da estrada de ferro.
Em vários lugares as linhas em bitolas diferentes se encontram. São até comuns os trechos em bitola mista, com a utilização de quatro ou três trilhos.
Maquete de Don Niday, onde o autor quis demonstrar a utilização de duas bitolas distintas em escala. É visivel a diferença no porte dos vagões de acordo com a bitola.
A capacidade de transporte das vias mais largas é nitidamente maior do que das vias estreitas. E essa capacidade que varia com o elemento técnico deve ser considerada pelo historiador da economia que vá se debruçar sobre o período referente ao surto ferroviário do século XIX.
Uma comparação pertinente, na década de 1880, seriam as estradas de ferro Oeste de Minas e Minas & Rio. A primeira, usufruindo dos 9 contos de subvenção por quilômetro, viu esta cifra representar quase metade do que gastou na construção da via. O valor total por quilômetro ficou em 21:850$000(21 contos e 850 mil réis), ou seja, o governo ficou responsável por 41,18% do total dessa quantia. Se a Minas & Rio, que optou pela bitola métrica, adotasse também a subvenção de 9 contos/km, não teria a mesma sorte que a Oeste, já que teve um gasto muito superior por quilômetro construído, exatamente 91:148$548 (91 contos, 148 mil e 548 réis), em que os 9 contos representariam apenas 9,87% dos gastos, o que tornou a garantia de 7% muito mais interessante para esta.
Para além de vermos que o Rio Grande foi testemunha de vários acidentes, como este envolvendo uma Northen (4-8-4) GELSA, a famosa “Francesona”, podemos ver a bitola mista em três trilhos. 1,00m por fora e 0,76m por dentro. Via da Rede Mineira de Viação proveniente da E. F. Oeste de Minas. Foto: Acervo NEOM-ABPF.
A Denver & Rio Grande Western Railroad teve experiência semelhante à da Oeste de Minas, e teve linhas tanto em bitola de 3 pés (0,91m) quanto em standard (1,43m), como pode-se ver trecho em dual gauge na fotografia de Drew Jacksich. (Para o maluco que quer saber que locomotiva é essa, sim, é uma K-37)
Num acidente em San Francisco, vê-se uma locomotiva com três pontos de engate do tipo link n’pin para manobrar carros e vagões de três bitolas diferentes. Foto de G.K. Gilbert.
Trecho em bitola mista (1,00m por dentro e 1,60m por for a) no estado de São Paulo, operado pela ALL e pela FCA. Foto de Lucas MR.
Referências bibliográficas:
PUFFERT, Douglas J. "The Standardization of Track Gauge on North American Railways, 1830-1890". IN: The Journal of Economic History, Vol. 60, No. 4, (Dec., 2000), pp. 933-960. Stable URL: http://www.jstor.org/stable/2698082 (acesso apenas por universidades)
SANTOS, Welber. A Estrada de Ferro Oeste de Minas: São João del-Rei (1877-1898). Dissertação de Mestrado. Mariana, MG: ICHS/UFOP, 2009.
VAZ, Mucio Jansen. Estrada de Ferro Oeste de Minas – Trabalho histórico-descriptivo, 1880-1922. São João del-Rei: EFOM, 1922.
WIKIPÉDIA: railway gauge http://en.wikipedia.org/wiki/Track_gauge
[1] As companhias que obtinham concessões provinciais deviam optar ou pela garantia de juros de 7% ou pela subvenção quilométrica de 9 contos de réis.
Prezado Welber,
ResponderExcluirOutro artigo interessante, como sempre, mas me permita corrigir um detalhe: a Ytuana, inaugurada a 17/04/1873 (trecho Jundiaí a Itú), tinha originalmente bitola 0.96m. Só passou a ser métrica após a fusão com a Sorocabana, que criou a Companhia União Sorocabana e Ytuana - CUSY, celebrada a 24/05/1892.
Marcelo
Obrigado pela correção, Marcelo. Informação relevante, o que amplia a porcentagem de bitolas díspares das "padrões".
ResponderExcluirLendo sobre diferenças de bitolas e o que elas acarretavam me lembrei de um texto (se não me engano na Wikipédia) sobre a história da ferrovia no Reino Unido, que dizia que tão logo foram surgindo diferentes empresas, um "cavalheiro" ligado as ferrovias propôs o padrão de 1,4m para bitola dos trens e tal foi aceito, visando assim não ter problemas com trilhos de diferentes redes.
ResponderExcluirExistem atualmente no Brasil no mínimo 8 bitolas ferroviárias, que são:
ResponderExcluirI -1,60m Na região sudeste SP, MG, RJ e em expansão pela Valec.
II -1,43m Ferrovia isolada Amapa-AP, linhas 4 e 5 metro de SP e metro de Salvador-BA (em implantação).
III-1,35m Bonde de Santos-SP turístico (Única no mundo).
IV- 1,10m Bonde Santa Teresa-RJ turístico/passageiros.
V - 1,00m Em praticamente todo território+bonde E.F.Corcovado-RJ e E.F. Campos do Jordão-SP turísticos.
VI- 0,80m Locomotivas Krauss da antiga Cia Docas de Santos.
VII- 0,76m Ligação São João Del Rey-Tiradentes-MG turístico.
VIII-0,60m Trecho Pirapóra-Perus-SP turístico (em restauração).
Destas, apenas a de 1,0 m com 23.678 km (73%) e a de 1,6 m com 6.385 km (27%) já inclusos os 510 km de mistas são relevantes, conforme dados da ANTT de setembro de 2011.
O governo paulista tem acenado com muitos projetos utilizando trens de passageiros convencionais regionais em média velocidade max. 150 km/h como SP-Campinas, SP-Sorocaba, SP-Vale do Paraíba, SP-Santos,
(Com cremalheira), utilizando parte da estrutura existente, semelhante projeto em curso na Argentina, numa expansão gradual e econômica,
porem nenhuma teve prosseguimento, pois seria uma forma prática de se demonstrar ao governo federal de como se é possível implantar
de forma gradativa, um trem de passageiros de longo percurso com custo, manutenção e tempo de implantação extremamente menor em relação ao TAV.
Entendo que deva haver uma uniformização em bitola de 1,6 m para trens suburbanos de passageiros e metro, e um provável TMV no Brasil,
e o planejamento com a substituição gradativa nos locais que ainda não a possuem, utilizando composições como destas 12, (36 unidades)
em que a CPTM colocou em disponibilidade em cidades como Teresina-PI, Natal-RN, Maceió-AL, João Pessoa-PB operadas pela CBTU que ainda as utilizam em bitola métrica, com base comprovada em que regionalmente esta já é a bitola nas principais cidades e capitais do Brasil, ou seja: São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Porto Alegre, Brasília, Recife, e Curitiba (projeto), e que os locais que não a possuem, são uma minoria, ou trens turísticos.
Quanto aos desgargalamentos, entendo que deva investir urgentemente para construir o rodoanel, juntamente com o ferroanel norte e leste por questão de menor custo, alem de se reservar as últimas áreas periféricas paralelas disponíveis para estações ferroviárias em SP, como o:
I ª Pátio do Pari,
II ª Área entre a estação da Luz e Júlio Prestes (Bom Retiro) no antigo moinho desativado, e recentemente demolido.
III ª Cercanias da estação da Mooca até a Av. do Estado na antiga engarrafadora de bebidas desativada no município de São Paulo.
( Continua na proxima em notas: )
Luiz Carlos Leoni,
ExcluirMuito obrigado pela contribuição. No caso do pequeno artigo, o que se quis foi dar uma nota breve e sucinta sobre bitola, sem incorrer em tantos detalhes e sem considerar linhas de bondes e metrô, além de focar, como me parece simples de verificar, o grosso da malha nacional, principalmente aquilo que originou e foi administrado pela RFFSA. Abraços, Welber.
( Continuação )
ResponderExcluirNotas:
1ª A bitola métrica existe em 39 países, sendo que na América do Sul ela esta presente nos seguintes países: Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Chile e Uruguai (mista, 1,43 + 1,0m em implantação ).
O Brasil tem fronteiras terrestres com dez países, sendo que a integração com o Chile se faz via Argentina.
2ª São seguintes as bitolas na Argentina em (km) ; 1ª 1,676 m- 23.191, 2ª 1,0 m- 13.461, 3ª 1,43 m- 3.086 4ª 0,75 m- 823 . Portanto, fica comprovado,
que como no Brasil, a bitola de 1,43 m é minoritária, com somente 8% de participação.
3ª Em nenhum dos principais países Sul Americanos a bitola de 1,43 m é maioritária e o modelo de trem rápido de passageiros a ser adotado pela Argentina é o TMV aproveitando parte da estrutura existente, semelhante ao projeto do governo paulista.
4ª A Índia, não é só a segunda maior população do mundo, como a segunda maior rede ferroviária ou seja em (km),1ª 1,676m- ~90.000, 2ª menor que 1,0m- ~3.350. Portanto muito maior do que a soma de Argentina, Brasil, Chile e Uruguai juntos, sem um único km em 1,43m!!!
5ª A bitola larga permite que se utilize a largura máxima padronizada para vagão de passageiros conforme gabarito, é de 3,15 m (Composições Budd), sendo que a Supervia-RJ esta tendo que cortar parte das plataformas para se adaptar as novos trens, enquanto a CPTM-SP que já á possui para este valor, quer prolongar em ~ 9 cm, pois as composições recebidas como doação da Espanha além de outras que não as Budd ter que trafegar com plataformas laterais no piso em frente as portas de ambos os lados, pois são mais estreitas, criando um vão entre trem e plataforma em ambos os lados.
6ª Padronizar gabarito de composições assim como forma de alimentação elétrica se terceiro trilho ou pantógrafo catenária é tão importante quanto a bitola, isto faz com que se tenha a flexibilidade das composições trafegar em qualquer local do país, sem que seja feita adaptações.
7ª Para visualizar e comprovar através de uma planilha de comparativo de custos de materiais ferroviários de que a diferença de valores entre as bitolas de 1,43m e 1,6m é mínima, veja: http://www.marcusquintella.com.br, entre outras, e esta tem uma explicação lógica, pois o que muda é somente o truque, pois o vagão, o gabarito e os demais equipamentos são exatamente os mesmos.
8ª Os custos de implantação e manutenção do TAV aumentam significamente em progressão geométrica em relação a trem de passageiros convencional para um mesmo percurso.
9ª São seguintes as dimensões de áreas úteis para vagões cargueiros, métrica:2,2 x 14,0m = ~30,8 m², larga 3 x 25m= ~75 m², Significando que com a larga, é possível carregar até dois contêineres, ou dois caminhões ou vários automóveis em duas plataformas (cegonheiras) como já existiu no passado pela “Transauto”.
10ª Assim como acontece em outros segmentos industriais, a padronização e uniformização de materiais, constitui num fator gerencial importantíssimo com relação a logística, racionalização e minimização de estoques e custos com sobressalentes, máquinas auxiliares e composições reservas.